Colunistas ||| Quanto está o jogo ?
Em um movimentado aeroporto do estado americano do Texas, uma passageira que acaba de desembarcar de um vôo doméstico da Delta Airlines constata, desolada, após meia hora de angustiante espera ao lado da esteira de bagagens, que sua mala se extraviou. Ela vai até um telefone e liga, gratuitamente, para o serviço de ajuda da empresa.
– Delta Airlines, may I help you (posso ajudá-la)? -, pergunta uma simpática e jovial voz feminina.
Seria tudo normal não fosse o fato de que a dona da voz agradável se encontra na cidade de Bangalore, no centro-sul da Índia, a 13 mil quilômetros e 12 fusos horários de distância do Texas.
Não muito distante da minúscula baia onde trabalha a atendente da Delta, outra jovem indiana, que se identifica ao telefone como Susan, tenta vender um cartão de crédito para um homem no Canadá.
– Nossas taxas são as menores do mercado -, diz a operadora de telemarketing, que jamais saiu da Índia e muito menos teve um cartão de crédito.
Exemplos como os dois acima são relatados em O Mundo é Plano, de Thomas L. Friedman (Editora Objetiva), leitura obrigatória para quem quer entender o processo de globalização. O livro explica como as empresas do século 21 competem entre si, na busca de melhor produtividade. Mostra também que, enquanto uma telefonista perde o emprego nos Estados Unidos, na Índia a economia cresce 10% ao ano, graças, em boa parte, à exportação de mão-de-obra sem que o empregado exportado saia de sua cidade.
O mercado financeiro precedeu em algumas décadas a globalização dos negócios em geral. Antes que os indianos começassem a trabalhar nos call centers de empresas ocidentais, os touros e os ursos já haviam achatado o planeta. Mas, mesmo para estes, nem sempre foi assim.
Em 1929, por exemplo, o crash da bolsa de Nova Iorque só se refletiu no Brasil quando o desemprego nos Estados Unidos fez despencar nossas exportações de café. Isso aconteceu vários meses após a queda da bolsa. Em outubro de 1973, quando a Guerra do Yom Kippur deu início ao choque do petróleo dos anos de 1970, o Brasil continuou crescendo no ritmo alucinante do celebrado milagre econômico iniciado quatro anos antes. Só em meados de 1974, quando o preço do barril do petróleo já havia quadruplicado, a crise chegou aqui.
Segunda-feira, 19 de outubro de 1987. O mercado brasileiro já prestava atenção ao que acontecia no resto do mundo, quando o Índice Dow Jones perdeu, entre a abertura e o fechamento do pregão em Nova Iorque, 22% de seu valor. No Brasil, o time lag dessa vez foi de apenas 24 horas. Na terça-feira, dia 20, o Ibovespa acompanhou o Dow. Nossos traders começavam a se globalizar. Aparentemente tarde, mas antes dos profissionais dos outros ramos de atividade.
Vieram, então, a queda do Muro de Berlim, o surgimento da internet e a colossal expansão do mercado de computadores pessoais. O mundo ficou plano. E, mais do que plano, pequeno.
Hoje em dia, qualquer estagiário de uma corretora de valores do País diz, com a maior naturalidade, para um cliente:
– O mercado está fraco. Saiu o CPI. Acima do esperado.
Esse CPI, ao qual o novato se refere com tanta intimidade, é o índice de preços ao consumidor. Nos Estados Unidos, bem entendido. Mas influencia a bolsa brasileira um segundo após ser divulgado. E mexe com os negócios lá de Bangalore também. A contratação de 15 operadores de telemarketing é adiada, só por causa do malsinado índice.
Como comecei cedo a operar nas bolsas de futuros de Nova Iorque e Chicago, também comecei cedo a olhar para o que acontecia nos demais fusos horários. Para mim, CPI já era uma realidade no início dos anos de 1980.
Certa vez, por volta de 1991, quando o telefone celular ainda engatinhava no Brasil, atravessei a Avenida Paulista conversando em um deles. Era final de tarde. Na outra ponta da linha, um broker de Chicago. Nós dois acompanhávamos a abertura do Índice Nikkei, da bolsa de Tóquio, negociado a futuro na Simex, em Cingapura. Ou seja, nossa conversa era o próprio retrato da globalização.
Um jovem pedestre que vinha em sentido contrário ao meu, ao me ver com aquele tijolaço no ouvido, pensando que se tratava de um rádio, perguntou:
– Ei, moço, quanto é que está o jogo?
– Jo… jogo? Ah, o jogo -, gaguejei. – Não, amigo, não estou ouvindo o jogo. Estou… -, quase eu disse para ele que estava acompanhando a abertura do Nikkei.
Para cada um de nós, a globalização veio em determinado momento. Mas veio. Até para o romeiro que, em Juazeiro do Norte, compra uma imagem de Padre Cícero… fabricada na China.
Quem sabe aquele rapaz, o tal que perguntou sobre o jogo, não aprendeu inglês e hoje trabalha em um call center em Uberlândia, Minas Gerais. Às vezes, eu o imagino falando com alguém, em Chicago.
– Sua passagem para Londres está confirmada. Primeira classe, assento 2B, corredor. Por favor, se apresente para embarque no O’Hare às 8 da manhã. Estou vendo aqui na tela que o senhor pediu comida kosher. Não se preocupe: será providenciada.
(Fonte: Resenha BM&F, n 171)
Ivan Sant´Anna